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terça-feira, 19 de outubro de 2010

Obesidade na infância e Interações Familiares: Uma Perspectiva Sistêmica

: Revista da ABESO » Edição nº 46 - Ano X - Nº 46 - Agosto/2010 » Obesidade na Infância


Valeria Tassara – Mestre em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); membro da Equipe de Psicologia do Hospital Infantil São Camilo – MG; associada da ABESO.

Trabalho como psicóloga no Setor de Nutrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG há 14 anos e, diante da observação das dificuldades dos diversos profissionais da área de saúde em lidar com a obesidade na infância, proponho abordar esse fenômeno numa perspectiva sistêmica(1), em que amplia-se o foco da criança como única responsável por sua obesidade para o contexto de relações familiares e sociais.

Nessas relações familiares ocorrem conflitos que se expressam em um excesso de proteção e cuidados maternos enfatizados na alimentação dos filhos (as). O pai, por sua vez, apresenta um certo distanciamento na relação com as crianças e mostra-se fragilizado como figura de autoridade. A tentativa de aproximação paterna se revela em uma permissividade alimentar.

Essas interações familiares conflituosas geram, principalmente nos filhos(as), ansiedade que se expressa em um comer excessivo. Esse comportamento alimentar relaciona-se a uma postura passiva das crianças para tomarem iniciativas em atividades cotidianas (tomar banho, trocar de roupa, fazer as refeições, estudar). Essa passividade prejudica o processo de autonomia(2) das crianças para lidarem com situações da vida, assim como o desenvolvimento de autoconfiança para estabelecerem relações interpessoais no contexto social. Ressalto que, relacionado a essas questões familiares, o contexto de violência urbana também restringe o espaço de convivência social das crianças.

Essa dinâmica de relações familiares e sociais culmina em experiências de sofrimento e adoecimento que envolve todo o grupo familiar. Esse sofrimento se mostra visível no excesso de peso no corpo da criança, o qual armazena uma sobrecarga psicológica invisível. Esses pesos biológico e psicológico(3) estabelecem conexões, já que a expressão do sofrimento psíquico da criança se revela na sua conduta do comer em excesso. A criança tenta comunicar, simbolicamente, ingerir conflitos e sofrimentos desse contexto sociofamiliar, dada a dificuldade de compreendê-los.

Na perspectiva sistêmica, os relatos dos pais, mães e crianças sobre as relações afetivas estabelecidas em torno da alimentação, seus aprendizados dos valores, crenças, gostos e saberes alimentares, assim como a retratação dos familiares obesos, possibilitam reportar à reedição do sentido simbólico de ser gordo em suas famílias. Essa recorrência entre as gerações aponta para a memória familiar(4) – criança ser gorda significa “puxar” o avô ou avó e o pai ou mãe -, sustenta a identidade familiar e proporciona aos membros um sentimento de pertencimento familiar.

No entanto, há um enrijecimento nessa identificação – ser gordo torna-se um modelo homogeneizador, dificultando o processo de diferenciação(5) , ou seja, de possibilidades de identificações com outras pessoas significativas da família. Agregado a isso, essas crianças se deparam com um padrão normativo corporal-magro característico da sociedade pós-moderna(6).

Diante disso, evidenciam-se vivências de conflitos em relação à identidade no ser gordo e a possibilidade de emagrecer, ou seja, diferenciar-se – poder tornar-se magro. Isso traz graves implicações no desenvolvimento psicoafetivo das crianças, já que, equivocadamente, familiares e até mesmo profissionais depositam, exclusivamente sobre elas, a responsabilidade do cumprimento da prescrição dietética. Desta forma, o descumprimento da dieta gera vivências de fracasso e desesperança, relacionadas à depressão ou agressividade direcionada aos familiares diante da atitude de cobrança excessiva quanto ao seu emagrecimento.

Acolher e respeitar as famílias em suas histórias constituem estratégias facilitadoras da relação entre a família e o profissional, na tentativa de que a intervenção não se torne uma ameaça à identidade do grupo familiar. Pelo contrário, que possibilite envolvimento e participação das famílias no processo de mudanças. A intervenção não se reduz a cuidar da mudança de hábitos alimentares, já que inclui a vida das pessoas, seus vínculos afetivos familiares e sociais, valores, dores e conflitos. Representa um processo dinâmico e reconstrutivo de um novo estilo de vida familiar.

O tratamento da obesidade na infância deve ser coconstruído entre os profissionais e as famílias(7). A responsabilidade da intervenção não pode ser atribuída exclusivamente ao médico pediatra, ou ao nutricionista, ou ao psicólogo, ou ao educador físico. Torna-se necessário criar possibilidades de diálogos e atuações entre os profissionais, com o intuito de gerar complementaridade entre os saberes(8).

Para tal, torna-se fundamental a atuação profissional interdisciplinar apoiada na perspectiva sistêmica em que as interações que se estabelecem entre pais, mães, filhos e filhas necessitam ser incluídas e articuladas às questões nutricionais que envolvem o processo de mudanças de estilo de vida das famílias.

Cuidar das crianças obesas implica considerá-las em seus contextos familiares e sociais. No sentido de “(trans) ver”, ou seja, acolhê-las com um olhar que vê além da sua gordura e peso. Respeitá-las na suas histórias familiares, nos seus sofrimentos, nas suas alegrias, nos seus saberes e nas suas curiosidades.

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